sexta-feira, 7 de março de 2014

Um bom ator é aquele que se reinventa, se propõe ir ao ridículo, para encontrar seus limites e se superar cada vez mais

Um pouco sobre o livro ¨O Riso¨ de Henri Bérgson.
Boa leitura!

Sobre o Cômico em Geral
Comicidade das Formas e dos Movimentos
Força de Expansão do Cômico

 
Que significa o riso? Que haverá no fundo do risível? Que haverá de
comum entre uma careta de bufão, um trocadilho, um quadro de teatro burlesco
e uma cena de fina comédia? Que destilação nos dará a essência, sempre a
mesma, da qual tantos produtos variados retiram ou o odor indiscreto ou o
delicado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristóteles, aplicaram-se a
esse pequeno problema, que sempre se furta ao empenho, se esquiva, escapa, e
de novo se apresenta como impertinente desafio lançado à especulação
filosófica.

Nosso pretexto para enfocar o problema é que não pretenderemos
encerrar numa definição a fantasia cômica. Vemos nela, antes de tudo, algo de
vivo. Por mais trivial que seja, tratá-la-emos com o respeito que se deve à vida.
Não nos limitaremos a vê-la crescer e se expandir. De forma em forma, por
gradações imperceptíveis, ela realizará aos nossos olhos metamorfoses bem
singulares. Nada desdenharemos do que tenhamos visto. Com esse contato
continuado talvez ganhemos algo de mais maleável que uma definição teórica —
um conhecimento prático e íntimo, como o que nasce de longa camaradagem. E
talvez descubramos também que fizemos sem querer um conhecimento útil.
Lógico, a seu modo, até nos seus maiores desvios, metódico em sua insensatez,
fantasiando, bem o sei, mas evocando em sonho visões logo aceitas e
compreendidas por uma sociedade inteira, acaso a fantasia cômica não nos
informará sobre os processos de trabalho da imaginação humana, e mais
particularmente da imaginação social, coletiva, popular? Fruto da vida real,
aparentada à arte, acaso não dirá nada sobre a arte e a vida?

Chamamos atenção para isto: não há comicidade fora do que é
propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime,
insignificante ou feia, porém jamais risível. Riremos de um animal, mas porque
teremos surpreendido nele uma atitude de homem ou certa expressão humana.
Riremos de um chapéu, mas no caso o cômico não será um pedaço de feltro ou
palha, senão a forma que alguém lhe deu, o molde da fantasia humana que ele
assumiu. Como é possível que fato tão importante, em sua simplicidade, não
tenha merecido atenção mais acurada dos filósofos? Já se definiu o homem
como "um animal que ri". Poderia também ter sido definido como um animal
que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seria
por semelhança com o homem, pela característica impressa pelo homem ou pelo
uso que o homem dele faz.

Observemos agora, como sintoma não menos digno de nota, a
insensibilidade que naturalmente acompanha o riso. O cômico parece só
produzir o seu abalo sob condição de cair na superfície de um espírito tranquilo
e bem articulado. A indiferença é o seu ambiente natural. O maior inimigo do
riso é a emoção. Isso não significa negar, por exemplo, que não se possa rir de
alguém que nos inspire piedade, ou mesmo afeição: apenas, no caso, será
preciso esquecer por alguns instantes essa afeição, ou emudecer essa piedade.
Talvez não mais se chorasse numa sociedade em que só houvesse puras
inteligências, mas provavelmente se risse; por outro lado, almas invariavelmente
sensíveis, afinadas em uníssono com a vida, numa sociedade onde tudo se
estendesse em ressonância afetiva, nem conheceriam nem compreenderiam o
riso. Tente o leitor, por um momento, interessar-se por tudo o que se diz e se
faz, agindo, imaginariamente, com os que agem, sentindo com os que sentem,
expandindo ao máximo a solidariedade: verá, como por um passe de mágica, os
objetos mais leves adquirirem peso, e tudo o mais assumir uma coloração
austera. Agora, imagine-se afastado, assistindo à vida como espectador neutro:
muitos dramas se converterão em comédia. Basta taparmos os ouvidos ao som
da música num salão de dança para que os dançarinos logo pareçam ridículos.

Quantas ações humanas resistiriam a uma prova desse gênero? Não veríamos
muitas delas passarem imediatamente do grave ao divertido se as isolássemos
da música de sentimento que as acompanha? Portanto, o cômico exige algo
como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito.
Ele se destina à inteligência pura.
Mas essa inteligência deve permanecer em contato com outras
inteligências. Esse o terceiro fato para o qual desejávamos chamar a atenção.
Não desfrutaríamos o cômico se nos sentíssemos isolados. O riso parece precisar
de eco. Ouçamo-lo bem: não se trata de um som articulado, nítido, acabado,
mas alguma coisa que se prolongasse repercutindo aqui e ali, algo começando
por um estalo para continuar ribombando, como o trovão nas montanhas. E, no
entanto, essa repercussão não deve seguir ao infinito. Pode caminhar no interior
de um círculo tão amplo quanto se queira, mas, ainda assim, sempre fechado. O
nosso riso é sempre o riso de um grupo. Ele talvez nos ocorra numa condução ou
mesa de bar, ao ouvir pessoas contando casos que devem ser cômicos para elas,
pois riem a valer. Teríamos rido também se estivéssemos naquele grupo. Não
estando, não temos vontade alguma de rir. Alguém a quem se perguntou por
que não chorava ao ouvir uma prédica que a todos fazia derramar lágrimas:
respondeu: "Não sou da paróquia". Com mais razão se aplica ao riso o que esse
homem pensava das lágrimas. Por mais franco que se suponha o riso, ele oculta
uma segunda intenção de acordo, diria eu quase de cumplicidade, com outros
galhofeiros, reais ou imaginários. Já se observou inúmeras vezes que o riso do
espectador, no teatro, é tanto maior quanto mais cheia esteja a sala. Por outro
lado, já não se notou que muitos efeitos cômicos são intraduzíveis de uma língua
para outra, relativos, pois, aos costumes e às ideias de certa sociedade?

Contudo, por não se ter compreendido a importância desse duplo fato, viu-se no
cômico simples curiosidade na qual o espírito se diverte, e no riso em si um
fenômeno exótico, isolado, sem relação com o restante da atividade humana.
Daí essas definições tendentes a fazer do cômico uma relação abstrata,
percebida pelo espírito entre ideias: "contraste intelectual", "absurdo sensível"
etc., as quais, mesmo que conviessem realmente a todas as formas de
comicidade, não nos explicariam absolutamente por que o cômico nos faz rir. De
fato, como acontece que essa relação teórica específica, tão logo percebida, nos
encolha, nos dilate, nos sacuda, ao passo que todas as demais deixam o nosso
corpo indiferente? Não enfocaremos o problema por esse aspecto. Para
compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a
sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função
social. Digamo-lo desde já: essa será a ideia diretriz de todas as nossas reflexões.
O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter
uma significação social.
 
Um livro que merece ser lido integralmente, e várias vezes. É necessário um aprofundamento para obter a percepção de algo tão sutil e ao mesmo tempo difícil, que é ¨o riso¨.

Nenhum comentário:

Postar um comentário